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O conceito de liberdade de Sri Aurobindo
Uma versão editada de uma palestra realizada no Nehru Centre, em Londres, de Sonia Dyne.
Outubro de 2007
Ninguém nunca explorou a natureza da liberdade mais profundamente e apaixonadamente do que Sri Aurobindo. ‘O anseio de ser livre’, ele escreveu, ‘está alojado em uma camada tão profunda do coração humano que mil argumentos não têm o poder para arrancá-lo’.
Sri Aurobindo olhou para o conceito de liberdade primeiramente com os olhos de um líder político revolucionário, que também era um poeta, e depois com os olhos de Mestre místico e espiritual que se tornou. O que ‘liberdade’ significa? Como pode ser realizada pela vida individual e coletiva de uma nação? Como atingimos o equilíbrio correto entre a liberdade individual e os interesses coletivos de uma sociedade ou nação? Por que a luta por liberdade, alimentada por palavras corajosas e inspiradoras, com tanta frequência, termina em derramamento de sangue e em um novo tipo de tirania?
No curso de uma vida devotada a encontrar respostas a essas questões, ele gradualmente desenvolveu uma visão integral de liberdade humana que se tornou o seu legado para a Índia, para o mundo. Para ele, liberdade era mais do que apenas ‘um conveniente espaço necessário para as nossas energias naturais’. Para ele, liberdade era um aspecto eterno do espírito humano, tão essencial à vida quanto a própria respiração. Todo o seu conceito de liberdade é baseado na premissa de que há na humanidade uma alma em evolução que requer liberdade para a sua evolução, assim como há na natureza um impulso secreto na direção da unidade. Essas demandas gêmeas da nossa natureza, que agem abertamente ou no plano de fundo, agem como uma espora para o progresso até que o homem complete o seu destino para ultrapassar a si mesmo. Elas devem ser reconciliadas se as nossas questões a respeito de liberdade estiverem por encontrar uma resposta.
A minha esperança é de que eu serei capaz de transmitir algo daquela visão e mostrar como ela se desenvolveu e foi enriquecida no curso de uma vida extraordinária e frequentemente turbulenta. Esta noite, quase na véspera no Dia Nacional da Índia, posso pensar que não haja um lugar mais apropriado para iniciar do que a primeira parte da mensagem de Sri Aurobindo para a nova nação, difundida na rádio All-India há 60 anos:
“15 de agosto de 1947 é o aniversário da Índia livre. Marca para ela o fim de uma velha era, o começo de uma nova era. Porém, nós também podemos tomá-la para a nossa vida, e que representa para uma nação livre como uma data importante na abertura de uma nova era para todo o mundo, para o futuro político, social, cultural e espiritual da humanidade. 15 de agosto é o meu aniversário e é naturalmente gratificante para mim que essa data devesse ter assumido essa vasta significância. Eu tomo essa coincidência, não como um acidente fortuito, mas como a sanção e o selo da Força Divina que guia os meus passos no trabalho com o qual comecei a vida, como o começo de sua completa fruição. De fato, neste dia posso assistir a quase todos os movimentos do mundo que eu esperei ver serem cumpridos no meu tempo de vida, embora eles, então, parececem sonhos impraticáveis, chegando na fruição ou no caminho para serem alcançados. Em todos esses movimentos, a Índia livre pode bem desempenhar uma grande parcela e tomar uma posição de liderança... ( Ref. 1)
Esta foi uma mensagem que olhou para o futuro. A conquista da Independência apenas foi um prelúdio para o futuro papel da Índia como um poder mundial – um estágio essencial para que as qualidades da alma da Índia pudessem ressurgir do sono de eras e serem dadas ao mundo. Porém, na virada do último século, a necessidade imediata era a libertação da Índia do controle estrangeiro. As nações, assim como os homens individuais, não podem evoluir para o seus mais repletos potenciais, enquanto o swadharma não for capaz de se expressar livremente na vida coletiva.
Desde muito jovem, Sri Aurobindo foi um leitor apaixonado. Shelley era um favorito; alguma coisa daquela admiração fervorosa do poeta pelos ideais da revolução francesa entraram profundamente em sua consciência. Depois, ele recontaria que leu de novo e de novo The Revolt of Islam de Shelley, com sua apaixonada defesa da liberdade como um ideal, porque algo nele respondia a isso. Desde então, ele tinha uma ideia de devotar a sua vida a um movimento mundial similar em defesa da liberdade. Nesse período, e durante os seus anos na St Paul’s School, ele viu a revolução francesa através dos olhos dos poetas românticos ingleses, e deles primeiro aprendeu a fórmula mágica – Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Essa fórmula se tornaria central para o seu conceito de liberdade.
Em Londres, e depois na King’s College Cambridge, Sri Aurobindo encontrou-se atraído pelos ideais nacionalistas de homens como Charles Stuart Parnell na Irlanda. Um dos seus poemas iniciais em louvor a Parnell é significante à luz do que estava por vir:
Patriots, behold your guerdon! This man found
Erin, his Mother, beaten, chastised, bound,
Naked to imputation poor, denied,
While alien masters held her house of pride…(Ref. 2)
Patriotas, vejam a sua recompensa! Este homem encontrou
Erin, sua Mãe, espancada, castigada, dominada,
Nua para imputar a pobreza, negada,
Enquanto mestres estrangeiros se apossaram do lar do seu orgulho... (tradução livre)
Essa imagem da Mãe acorrentada entrou tão profundamente em sua consciência que ela se tornaria um grito de guerra a estimular a juventude da Índia e a unir os seus cidadãos em oposição ao controle britânico.
Em 6 de fevereiro de 1893, Sri Aurobindo retornou à Índia. Ele tinha 21 anos e havia estado longe da terra em que nasceu por 14 anos. O segundo grande ponto de transição na vida dele estava prestes a começar.
Ele começou a imergir em cada aspecto da vida indiana – a sua cultura, as suas tradições, as suas religiões, as suas línguas (antigas e modernas), as aspirações do seu povo. Ele ensinou inglês e francês na English College em Baroda, além de uma variedade de outras tarefas a serviço do Marajá. E o tempo todo ele continuou a escrever, não apenas poesia, mas cartas e artigos críticos do Congresso Nacional indiano por sua falta de firmeza em lidar com o governo imperial. Ele se tornou cada vez mais consciente de que a sua verdadeira missão na vida era trabalhar pela independência da Índia do controle britânico e ele jogou toda a sua energia nessa luta. Por meio da atividade política e por ser editor de dois jornais influentes, a sua fama e a sua influência cresceram rapidamente.
Em seus discursos públicos e escritos, Sri Aurobindo começou a colocar ênfase na importância da independência, não apenas na causa da Índia, mas para a humanidade como um todo. O seu conceito de liberdade tinha se ampliado para abranger o mundo todo, e ele veio a enxergar claramente a importância de harmonizar os clamores de liberdade com aqueles de igualdade e irmandade. Relativo à falha da revolução na França, ele escreveu:
“Ela (a liberdade) é o objetivo da humanidade, e nós ainda estamos distantes desse objetivo. Porém, a hora chegou para que uma aproximação seja tentada. E a primeira necessidade é a disciplina da irmandade, a organização da irmandade; pois, sem o espírito e o hábito da fraternidade nem a liberdade nem a igualdade podem ser mantidas por mais do que uma curta temporada. Os franceses foram ignorantes desse princípio prático; eles fizeram da liberdade a base, irmandade a superestrutura, fundando o triângulo sobre o seu ápice ...... o triângulo tem de ser invertido antes que possa se erguer permanentemente.” (Ref.3)
Sri Aurobindo estava convencido de que, uma vez conquistada a sua liberdade, a Índia desenvolveria em si mesma os meios para inverter o triângulo.
Inevitavelmente, as atividades políticas de Sri Aurobindo e aqueles a ele associados o colocaram em conflito com os britânicos na Índia. Ele foi preso sob acusações de sedição em 1908, e passou um ano nas severas condições da cadeia de Alipore. Foi um tempo de grande significância em sua vida. Ele percebeu mais vividamente do que nunca antes o único espírito que une e move a humanidade, e isso mudou a sua percepção do papel que a luta política tinha desempenhado em sua vida. Não parecia mais um fim em si mesma, mas apenas o começo do seu trabalho a apressar o advento de uma nova consciência na humanidade baseada na aceitação da unidade humana como um fato. As suas experiências enquanto estava na prisão o convenceram da verdade a muito preservada nas antigas tradições espirituais da Índia. “O único resultado da ira do governo britânico, ele escreveu, foi que eu encontrei Deus.” (Ref. 4)
Sri Aurobindo viu que um sentido do infinito permeando todas as coisas, mesmo as mais materiais, é nativo à alma indiana: esse sentido é que faz a verdadeira irmandade possível. No Human Cycle ele escreveu:
“Já é a irmandade a chave real para o triplo evangelho da ideia de humanidade. A união de liberdade e igualdade apenas pode ser alcançada pelo poder da irmandade humana e não pode estar fundada em qualquer outra coisa. Porém, a irmandade existe apenas na alma e pela alma: ela não pode existir por nada mais. Pois, essa irmandade não é um tema nem de parentesco físico ou de uma associação vital ou de um acordo intelectual. Quando a alma reivindica liberdade, é a liberdade do seu autodesenvolvimento, o autodesenvolvimento do Divino no homem e em todos os seus seres.
Quando ela reivindica igualdade, o que está reivindicando é aquela liberdade igualmente para todos e o reconhecimento da mesma alma, da mesma divindade, em todos os seres humanos.
Quando ela se esforça pela irmandade, está estabelecendo aquela igual liberdade de autodesenvolvimento em um objetivo comum, uma vida comum, uma unidade de mente e de sentimento estabelecida sobre o reconhecimento da unidade espiritual interior.
Essas três coisas são na verdade a natureza da alma; pois, Liberdade, Igualdade, Unidade são os eternos aspectos do Espírito. É o reconhecimento prático dessa verdade, é o despertar da alma no homem e a tentativa dele de viver da sua alma, e não do seu ego, que é o significado profundo da religião, e é isso que a religião da humanidade também deve alcançar antes que ela possa se consumar na vida da raça.” (Ref. 5)
Após a sua libertação em Alipore, Sri Aurobindo retornou para a arena política. Ele iniciou um jornal semanal em língua inglesa, The Karmayogin, e um semanário em bengali, discursou em encontros nacionalistas e desafiou a facção moderada por sua falta de firmeza. Nesse período, ele começou a ser conhecido nos círculos britânicos como o homem mais perigoso da Índia. Havia uma possibilidade real de que ele fosse ser preso novamente. Sendo prevenido, Sri Aurobindo deixou a Índia britânica e se refugiou em Chardernagore, e depois em Pondicherry.
Sri Aurobindo chegou em Pondicherry em 4 de abril de 1910. Ele permaneceria lá pelo resto da sua vida, exercitando a vasta síntese de conhecimento intelectual e experiência espiritual, que ele chamou de Yoga Integral. Todo o conhecimento que ele acumulou durante as suas explorações ao Ocidente e à filosofia, à cultura e à tradição indianas, foi despejado em uma série de estudos publicados de forma serial em um novo jornal chamado Arya. Foi uma realização sem precedentes, mais de trinta volumes de filosofia, yoga, história, estudos sociais e políticos, traduções e comentários a antigos textos, crítica literária, poesia, peças teatrais – um completo e integrado sistema de pensamento e conhecimento que apontou para algo além de si mesmo: as descobertas do futuro. Ele já tinha preparado o terreno para a independência da Índia. Ele tinha assentado a fundação segura, agora outros continuariam a construir sobre ela. O seu próprio trabalho para o progresso humano não estaria mais na superfície para que todos vissem.
Os últimos 24 anos da vida de Sri Aurobindo foram gastos em isolamento, mas isso não significou uma retirada da vida. Ele manteve diante dele o ideal da liberdade e sabia por experiência que a verdadeira liberdade tinha de se descobrir dentro do coração humano, tinha de florescer dentro da aceitação do ‘outro’ como irmão ou irmã, não apenas em teoria, mas de fato. A sua definição final de liberdade é uma visão que transcende o pensamento racional e salta para uma compreensão quase mística:
“Liberdade é a lei do ser na sua unidade ilimitável, o segredo mestre de toda a Natureza: a servidão é a lei do amor no ser que voluntariamente se doa para servir a trama de seus outros eus na multiplicidade. (Ref. 6)
É quando a liberdade trabalha acorrentada e a servidão se torna uma lei da Força, não do Amor, que a verdadeira natureza das coisas é distorcida, e uma falsidade governa os assuntos da alma na existência. (Ref. 7)
A natureza inicia com essa distorção e joga com todas as combinações que pode conduzir, antes de permitir que ela seja corrigida. Mais tarde, ela reúne toda a essência dessas combinações em uma nova e rica harmonia de amor e liberdade. (Ref. 8)
A liberdade vem por uma unidade sem limites; pois, essa é a nossa existência real. Podemos alcançar a essência dessa unidade em nós mesmos; podemos tornar real sua atividade em unicidade com todos os outros. A dupla experiência é a completa intenção da alma na Natureza. (Ref.9)
Tendo tornado real a unidade infinita em nós mesmos, então nos darmos ao mundo é a liberdade total e o domínio absoluto. (Ref. 10)
Infinitos, nós somos livres da morte; pois, a vida se torna então uma representação da nossa existência imortal. Nós somos livres da fraqueza, pois somos todo o mar desfrutando o choque incontável de suas ondas. Nós somos livres do pesar e da dor, pois aprendemos como harmonizar o nosso ser com tudo que o toca, e a encontrar em todas as coisas a ação e a reação do deleite da existência. Nós somos livres da limitação, pois o corpo se torna um joguete da mente infinita e aprende a obedecer o desejo da alma imortal. Somos livres da febre da mente nervosa e do coração, já que não estamos vinculados à imobilidade. (Ref. 11)
Imortalidade, unidade e liberdade estão em nós mesmos e aguardam a nossa descoberta; mas, para a alegria do amor, Deus em nós ainda permanece sendo muitos. (Ref.12)”
Esta foi a última palavra de Sri Aurobindo sobre a natureza da liberdade.
Sonia Dyne
Referências:
1) Collected Works of Sri Aurobindo - CWSA, Vol.36, p.478
2) CWSA, Vol. 2, Collected Poems, p.17
3) Ref. 3 - CWSA, Vol. 1, Early Cultural Writings, p. 530
4) Sri Aurobindo - Tales of Prison Life, p.3
5) CWSA, Vol.25, The Human Cycle, p. 570
6) CWSA Vol. 13, Essays in Philosophy and Yoga, Thoughts and Aphorisms, p. 206
7) Idem
8) Idem
9) Idem
10) Idem
11) Idem
12) Idem
Referências gentilmente fornecidas por Aryadeep